1. VIDA MISERÁVEL
ꭗ — East Houghton Manor, Surrey
OUTUBRO DE 2018
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Está cinza hoje, claro, como esperado.
É como se até o céu lamentasse a ausência de Marshall em nossos corações — especialmente no meu, quando o dia amanheceu tranquilo e seu coração não batia mais.
Câncer, disseram.
Mas como isso é possível? Ninguém sabia, não até que ele deu seu último suspiro. O médico, que também era amigo da família, honrou o desejo de Marshall de manter segredo da mídia e, principalmente, da família.
Agora, enquanto seu corpo está selado no jazigo da família ao lado de Louis Houghton, seu primogênito, me pergunto se ele suportou toda aquela dor sozinho apenas para não sobrecarregar aqueles ao seu redor, as pessoas que o amavam apesar de suas falhas, e a quem ele também amava.
Toco a placa na lápide, o mármore frio sob meus dedos, deslizando pelas palavras gravadas e apertando a dor no meu peito.
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Marshall Edward Houghton
12º Conde de Houghton
1943 – 2018
Servidor leal da Coroa e do País.
Honrado em vida e amado por aqueles que o conheciam melhor.
Que ele encontre paz eterna, assim como a proporcionou em vida.
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Achei que já tinha chorado todas as lágrimas dentro de mim, mas ainda assim meus olhos ardem como se não tivesse derramado uma única desde que o encontrei frio em sua cama, pensando em como a morte, minha velha amiga, poderia ser tão cruel comigo.
Sempre fez parte da minha vida, mas eu esperava que me deixasse em paz com o único homem que me aceitou.
Claro que não, como eu poderia esperar isso?
A primeira vez que meu mundo desabou, eu tinha cinco anos.
Perdi meus pais em um trágico acidente envolvendo três outros carros e um caminhão desgovernado. Felizmente, não me lembro de nada daquela época. Dizem que bloqueei as memórias porque eram dolorosas demais. Mas ainda sonho com os sons e as cores das sirenes eventualmente.
Depois, descobri que passei vinte minutos entre os destroços, com meus pais já falecidos no banco da frente.
Felizmente, minha memória mais antiga é colorida. Minha tia Amelia, irmã mais nova da minha mãe, me acolheu e cuidou de mim como se eu fosse sua própria filha. Foram anos felizes. Eu tinha uma família e uma prima tão próxima que não seria errado chamá-la de irmã.
Mas então, mais uma vez, a morte veio para mim e levou a vida da minha tia em outro acidente de carro.
É a maldição dos Sinclair, diziam.
Após a morte heroica do meu avô, Harold Sinclair, que salvou o próprio homem agora descansando atrás desta placa, seus descendentes morreram um por um.
Sou a última pessoa com sangue Sinclair, e isso é algo que me assombrará pelo resto da vida...
Bem, não exatamente a única mais.
O vento move suavemente as árvores antigas. O farfalhar das folhas soa como um lamento suave, quase uma canção triste, e me pergunto se Marshall pode ouvi-la, onde quer que esteja agora.
Fico ali em frente ao jazigo, sem me importar com a chuva leve que começa a cair. As gotas escorrem pelo meu rosto, misturando-se com as lágrimas que não tento mais segurar.
De certa forma, fico feliz que esteja chovendo... assim, ninguém precisa ver o quão quebrada estou por dentro.
“Você se foi sem dizer adeus,” murmuro, a voz vacilante. “Sem me dar a chance de agradecer por tudo.”
Ele é quem me viu, minha figura paterna mais importante.
Foi Marshall que me acolheu e me fez sentir valorizada.
“Vou cuidar de tudo,” prometo, quase sussurrando. “O legado, a memória, seu testamento… Tudo o que você deixou para trás.”
Toco meu ventre, acariciando suavemente a nova vida crescendo dentro de mim — algo que nunca tive a chance de contar a ele.
Meus dedos hesitam, sentindo o peso do anel de ouro por um segundo, mas não ouso dizer em voz alta.
Esmagando o caule da rosa branca em minha mão, deixo os espinhos perfurarem minha pele. Não me importo nem um pouco. Nem sinto a dor.
Mesmo enquanto meu sangue mancha as pétalas de vermelho, não pisquei.
Na verdade, é até bem-vindo.
"Vovô..." Sorrio através das lágrimas, "Você vai ser bisavô."
Fecho os olhos por um momento e deixo a confissão se dissolver no silêncio. O segredo que guardei sozinha pulsa sob minha pele, vivo, quente e aterrorizante.
Marshall merecia saber.
Mas agora é tarde demais.
Ajoelho-me suavemente e coloco a rosa manchada de sangue aos pés do túmulo, observando as pétalas absorverem a chuva e voltarem a ficar brancas, como se tivessem uma segunda chance.
Então me levanto novamente, lentamente, com as mãos descansando sobre minha barriga, protegendo a vida dentro de mim como se guarda um tesouro antigo e precioso, e caminho de volta para a mansão com passos lentos, deixando a chuva lavar sobre mim... minha dor, meu luto — ou pelo menos tentar.
O interior está quieto, mas não vazio. É o tipo de silêncio que pesa, como se cada parte da casa ainda ecoasse com vozes abafadas do velório, passos sussurrados e condolências murmuradas.
O cheiro de madeira antiga e cera de vela paira no ar, misturado com o aroma desvanecido de flores recém-cortadas, e tudo parece congelado, como se o tempo não tivesse avançado desde sua morte.
Subo as escadas do hall principal silenciosamente e devagar, sabendo que meus sapatos deixarão pegadas molhadas no tapete persa, mas não me importo... Tudo agora parece sem sentido.
Meu corpo me guia, como se soubesse para onde ir antes de eu decidir, e claro, para onde mais eu iria? Há um último lugar onde preciso dizer adeus, para realmente deixá-lo ir.
O escritório de Marshall.
Mas a porta já meio aberta me faz pausar por um momento.
Aquele quarto sempre foi sagrado para o velho conde. Lembro-me de me esconder atrás da poltrona de couro ou da porta entreaberta para vê-lo lendo silenciosamente, os óculos escorregando pelo nariz.
Mas quando empurro a porta com a ponta dos dedos, meus olhos se arregalam com algo que faz meu coração parar.
O sangue drena do meu rosto, e a escuridão nubla minha visão. Tenho que segurar o batente da porta para evitar que minhas pernas cedam.
Christopher, meu marido, com seu cabelo castanho despenteado e a camisa preta ligeiramente desabotoada, está sentado na mesma poltrona que eu uma vez pensei ser uma fortaleza... o melhor esconderijo de todos.
Meu marido, com aquele olhar usualmente distante e sério e aqueles olhos castanhos frios... e Evelyn, sua amante, empoleirada na mesa de Marshall com as pernas cruzadas como se fosse dona do lugar.
Vê-los naquele espaço sagrado dói mais do que qualquer morte. Meu peito aperta tanto que não consigo respirar.
Por um momento, o silêncio grita.
Evelyn vira a cabeça lentamente, como se estivesse esperando por este momento com um toque de cruel satisfação, e sorri, feliz em me ver quebrada de todas as formas possíveis.
"Você não podia nem esperar o corpo esfriar?" Minha voz sai baixa, trêmula, os olhos se enchendo de lágrimas mais dolorosas que o luto — estão cheias de traição.
Eu sabia, claro.
Sabia que o coração de Christopher sempre pertenceu a esta mulher... Mas esperava que nosso casamento, mesmo que forçado, fosse suficiente para interromper seus sentimentos por ela.
Esperava respeito pela vontade, pela ordem de seu avô, que acabara de ser enterrado ao lado da lápide de seu próprio pai.
"Charlotte," diz Christopher friamente, seus olhos caindo no chão como se não pudesse me encarar. E talvez ele realmente não possa.
Seu maxilar está tão contraído que um músculo salta sob sua barba aparada, e os dedos segurando uma pasta se apertam mais antes de finalmente estendê-la em minha direção.
Ele não se levanta.
Ele não me olha.
No entanto, posso ver que não há nada além de desprezo em seu rosto.
Ele apenas espera que eu vá até ele, como um cachorro, como fiz todos esses anos, e ele diz, sem consideração — "Quero o divórcio."
"Divórcio?" Repito, e o choque se transforma em uma risada suave e trêmula.
Christopher finalmente me olha, seus olhos afiados e intensos perfurando diretamente meu peito, transformando aquela risada em um sorriso distorcido.
Meus dedos se curvam ligeiramente, arranhando o batente da porta.
"Por quê? Para você ficar com aquela destruidora de lares?" Eu lanço um olhar severo para Evelyn, que continua sorrindo com os lábios pintados de vermelho, como se tivesse provado do meu sangue. "Você realmente não conseguiu nem respeitar o luto da sua família, Christopher..."
"Você sabe muito bem que eu nunca quis isso." Ele faz um gesto vago entre nós, sem realmente me olhar mais. "Eu nunca quis esse casamento. Vocês todos me forçaram — você, Charlotte... e aquele velho."
Se eu não soubesse melhor, pensaria que ele quase engasgou com as palavras. Se eu não soubesse melhor, poderia até acreditar que há um nó na sua garganta desde que ouviu que Marshall tinha ido dormir e nunca acordou... que ele deixou este mundo antes que tivéssemos a chance de nos despedir.
"Evelyn é..." Ele pausa, engolindo com dificuldade, seus olhos vermelhos cansados com círculos escuros e profundos, virando-se para mim. "Evelyn é a mulher que eu amo."
Essas palavras... Eu as ouvi tantas vezes antes, mas nunca me despedaçaram como agora. Elas sempre cortaram fundo, deixaram tudo dentro de mim cru, sangrando, exposto e bagunçado.
Mas agora...
Agora, tudo está nu.
Tão vulnerável quanto eu fui tantas vezes diante dele, esperando, ansiando, por um toque, um gesto, uma chance. Tão nu quanto a verdade que ele agora joga na minha cara com a mesma frieza que alguém usa para tirar um anel.
Meu coração se despedaça em um milhão de pedaços, e mais uma vez, eu perco o fôlego.
Minha garganta se aperta, com uma sensação de queimação nos olhos, mas eu luto contra as lágrimas.
Nem sei por que me recuso a deixá-las cair desta vez, afinal, eu já chorei na frente de Christopher tantas vezes.
Eu implorei para ele nos dar uma chance.
Eu me humilhei.
Eu me ajoelhei diante dele, minha alma exposta, com joelhos machucados de tanto perseguir um amor que nunca quis estar ali.
Por seis meses, eu fui a esposa, a amante, a amiga, a sombra—e mesmo assim, não foi suficiente.
Nunca fez a menor diferença.
Agora, meu marido me olha com aquela expressão... vazia, quase aliviada... Como se eu tivesse sido um fardo para ele...
Uma sentença de vida em um vestido de noiva.
"Sabe quantas vezes eu engoli tudo isso em silêncio?" Eu murmuro, dando um passo à frente sem quebrar seu olhar. "Quantas vezes eu ouvi isso ecoar na sua ausência? Na maneira como você não me tocava... na maneira como chegava tarde em casa e nunca me olhava direito?"
Christopher abaixa os olhos, mas não diz nada.
Evelyn, por outro lado, cruza os braços, e seu sorriso se alarga ainda mais. Ela enrola uma mecha de seu cabelo preto em torno do dedo com um gesto entediado e indiferente.
"Você me fez acreditar que era tudo minha culpa — que eu não era suficiente, que eu era difícil, dramática, possessiva." Eu rio novamente, agora cheia de puro sarcasmo e amargura. "Você alguma vez se importou comigo?"
Christopher aperta a mandíbula, e eu dou mais um passo, soltando a mão da moldura da porta e me aproximando até poder sentir o perfume dela misturado com o dele... até poder sentir o sabor amargo da traição persistindo no fundo da minha língua.
"Você quer o divórcio?" Eu balanço a cabeça, levantando o queixo desafiadoramente, uma nova risada nos lábios. "Que pena... Eu não vou te dar nada."
"Você vai," ele diz simplesmente, como se não estivesse nem um pouco perturbado. "Eu não estou pedindo, Charlotte."
A voz de Christopher vacila suavemente, perdida no som de uma gota atingindo o chão e quebrando o breve silêncio. Lentamente, seus olhos se arregalam e caem para minha mão, manchada de sangue quente e grosso dos espinhos.
Ainda assim, mesmo enquanto derramo meu sangue neste quarto sagrado, não sinto nada.
Estou tão entorpecida que até meu peito não dói mais.
Evelyn se aproxima de Christopher, ainda com aquele sorriso zombeteiro, e o toca com uma casualidade que faz meu sangue gelar. Suas mãos repousam no ombro e no pescoço dele, em um gesto possessivo e calculado para me lembrar que ele é dela — que sempre foi.
"Você sempre conseguiu o que queria, Charlotte..." A voz de Evelyn é suave e aveludada. "Você teve o nome, o título, a casa, mas agora é minha vez. Por favor, não seja assim... nós não somos culpados por nos apaixonarmos. Além disso, Christopher sempre deixou claro que ama a mim. Você é quem se colocou entre nós e arruinou tudo. Como isso é justo?"
Minhas mãos sangram, mas parece que o sangue nem é meu... como se o corte pertencesse a outra pessoa.
A raiva inunda minhas veias, quente, lenta e espessa.
Mas não é o tipo de raiva que explode... É o tipo que corrói, que repousa profundamente nos ossos... uma fúria silenciosa, fria, quase graciosa, o tipo que não precisa de gritos para ser compreendida.
“Charlotte, não torne isso mais difícil do que precisa ser. Meu avô está morto... não há razão para prolongar isso.”
“Eu já te disse, Christopher. Não vou te dar esse maldito divórcio,” rosno, meus olhos se afiam assim como minha voz. “Você realmente acha que vou deixar aquela vagabunda de quinta categoria tomar meu lugar?”
“Você não precisa decidir nada — agora eu sou o Conde. A decisão é minha.”
“Parabéns, Christopher, aposto que você está radiante!” retruco sarcasticamente, olhando para os dois de cima a baixo, incapaz de conter a fúria ameaçando transbordar. Então, lanço um sorriso zombeteiro e acrescento, “Mas você esqueceu um pequeno detalhe, querido.”
Christopher permanece em silêncio, mas seus olhos tremem ligeiramente, uma pequena rachadura se formando na parede de indiferença que ele construiu cuidadosamente.
“Enquanto você estava ocupado transando com sua amante durante a leitura do testamento, você não ouviu a cláusula dezessete.”
Evelyn interrompe o movimento de enrolar o cabelo, sua expressão endurece por um momento, e Christopher realmente empalidece, como se o sangue ainda pingando da minha mão tivesse acabado de ser drenado de seu rosto.
“Cláusula... o quê?” Sua voz sai fraca.
Levanto o queixo, o sorriso ainda nos meus lábios, mas agora mais frio, mais controlado, quase cruel como ele.
“Com as ações de Marshall, você pode continuar como acionista majoritário da empresa. Mas se nos divorciarmos...” Pauso, deixando minhas palavras penetrarem.
O sorriso de Evelyn vacila por um momento, e ela se inclina em direção a Christopher, sussurrando em seu ouvido, “Querido, o que isso significa?”
“Significa que Marshall Houghton deixou todas as suas ações na empresa para mim, não para Christopher.”
Evelyn fica pálida, seu rosto finalmente se torcendo em algo que reconheço e saboreio — pânico.
“Você está mentindo! Isso não faz sentido! Ele é o herdeiro legítimo... ele é neto de Marshall—”
“Mas ele me amava mais do que qualquer um,” digo orgulhosamente, sabendo que minhas palavras vão cortar mais fundo do que Christopher jamais admitirá. Eu não tenho sangue Houghton, é claro... Mas Marshall nunca escondeu seu favoritismo.
“Ligue para seus advogados, Christopher. Confirme o que estou dizendo. Você pode se divorciar de mim se quiser, mas essas ações vão escorregar por entre seus dedos como areia. E no final...”
Coloco a mão na barriga, levantando o queixo novamente e olhando para eles com superioridade, “... vou garantir que você perca absolutamente tudo.”
“E como você faria isso?!” Evelyn zomba, sua risada claramente forçada.
“Como?” Repito, e a palavra escorre como doce veneno. “Eu sou a esposa legal, herdeira das ações... grávida do próximo herdeiro direto da família Houghton.”
Christopher finalmente me olha, realmente me olha. Seus olhos se arregalam ligeiramente, como se a notícia fosse um verdadeiro pesadelo, a surpresa mais desagradável de sua vida, e admito, isso dói ainda mais.
Então sua expressão escurece com algo que não entendo, e não tenho certeza se quero entender.
O silêncio na sala se torna absoluto, com os segundos se arrastando... até que Christopher finalmente o quebra com uma voz fria, distante, indiferente:
“Muito bem. Se você escolhe ficar presa em um casamento sem amor, que assim seja. Mas a partir de hoje, Evelyn vai morar conosco na Rosehollow Estate. Aceite isso ou assine os papéis do divórcio — você pode reclamar o quanto quiser.”
Aperto minha mão ensanguentada, fazendo mais gotas mancharem o escritório de Marshall em uma despedida sombria, engolindo todos os meus protestos.
“Mas tenha em mente que nunca seremos um casal feliz e apaixonado...” ele pausa, olhando para mim com olhos cansados, depois acrescenta baixinho, entre dentes cerrados, “Eu juro, Charlotte... eu nunca vou te amar.”

















































































































































































































